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Cotidianamente, verifica-se que várias execuções de astreintes imputam os encargos previstos no art. 523 do CPC – multa e honorários de 10% sobre o valor total da execução – após o prazo para pagamento voluntário.
Ocorre que tal incidência é indevida, tanto pela natureza da multa cominatória quanto pela punição prevista nesse artigo.
Dessa forma, o presente artigo visa a analisar a incorreção de tal atribuição, considerando a natureza punitiva de ambos os montantes.
Inicialmente, é necessário recordar a finalidade dos institutos aqui discutidos. Primeiro, passamos à análise das astreintes. Estas são fixadas como penalidade no caso de não cumprimento da obrigação determinada pelo juízo, seja esta por medida liminar ou definitiva.
Ou seja, apresentam-se evidentemente como medida de coação, sob pena de serem executadas em caso de descumprimento da obrigação fixada, podendo incidir tanto por certo período de tempo quanto por ato de descumprimento.
Assim sendo, as astreintes não possuem caráter condenatório, sendo um efetivo meio de punição. Por tal razão, são inaplicáveis as determinações do artigo que será discutido a seguir. O art. 523, § 1º, prevê a incidência de multa e de honorários sobre a condenação no caso de não ser realizado pagamento tempestivamente, a saber:
Art. 523. No caso de condenação em quantia certa, ou já fixada em liquidação, e no caso de decisão sobre parcela incontroversa, o cumprimento definitivo da sentença far-se-á a requerimento do exequente, sendo o executado intimado para pagar o débito, no prazo de 15 (quinze) dias, acrescido de custas, se houver.
§ 1º Não ocorrendo pagamento voluntário no prazo do caput, o débito será acrescido de multa de dez por cento e, também, de honorários de advogado de dez por cento.
Ou seja, tal previsão busca punir o pagador em mora, além de incentivar o pagamento tempestivo. Dessa forma, ambas as medidas possuem natureza sancionatória, incidindo em caso de descumprimento de obrigação, seja esta de fazer, não fazer ou pagar. Por sua natureza, são efetivas punições, não se enquadrando no conceito de condenação.
Portanto, a aplicação conjunta acarretaria duplicidade ou, em outras palavras, bis in idem.
O ordenamento jurídico brasileiro proíbe a punição duplicada pelo mesmo fato de direito, consagrando como princípio o non bis in idem. Assim sendo, é inviável a aplicação de “multa sobre multa”, sob pena de violar as diretrizes do CPC. Nesse sentido, tal inaplicabilidade já foi reconhecida por diversos tribunais que, conforme as decisões abaixo delineadas, afastaram a duplicidade aqui discutida, rejeitando toda e qualquer incidência de multa e honorários previstos no artigo em pauta:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. Cumprimento de sentença em ação de obrigação de fazer. Decisão que rejeitou a impugnação ao cumprimento de sentença. Insurgência. Inadmissibilidade. As astreintes não possuem caráter condenatório, razão pela qual não incidem honorários advocatícios e multa do art. 523 do CPC em caso de não pagamento voluntário. Precedentes do STJ e dessa Corte. Decisão mantida. Recurso não provido.
(TJ-SP – Agravo de Instrumento: 2030799-55.2024.8.26.0000 São Caetano do Sul, Relator: Helio Faria, Data de Julgamento: 07/05/2024, 18ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 07/05/2024)
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DO CONSUMIDOR. FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. MULTA POR DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER PARA EXCLUIR O NOME DO FILHO FALECIDO DOS AUTORES DE CADASTRO RESTRITIVO AO CRÉDITO. EXECUÇÃO NO VALOR DE R$185.024,65. DECISÃO ANTERIOR QUE FIXOU O VALOR DA EXECUÇÃO EM R$152.800,00. EXEQUENTE QUE NÃO APRESENTOU O RECURSO CABÍVEL NO MOMENTO OPORTUNO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. INCIDÊNCIA DE JUROS MORATÓRIOS, CORREÇÃO MONETÁRIA E MULTA DO ART. 523 DO CPC SOBRE O VALOR DA CONDENAÇÃO DAS ASTREINTES CONFIGURA BIS IN IDEM. NÃO INCIDEM HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS SOBRE ASTREINTES. APLICAÇÃO DA SÚMULA Nº 279 do TJRJ. REFORMA PARCIAL DA SENTENÇA. – Trata-se de recurso de apelação de sentença que extinguiu a execução, reconhecendo o valor de R$185.024,65 acrescido da multa e os honorários advocatícios previstos no art. 523, § 1 º, do CPC, além da multa de 4% sobre o valor atualizado da causa imposta no acórdão, como o valor da execução de multa por descumprimento da obrigação de fazer de excluir o nome do filho falecido dos autores dos cadastros restritivos ao crédito – Afasta-se a preliminar de ausência de interesse recursal formulada pelos apelados. É permitido as partes a apresentação de recurso ante o inconformismo com a sentença, na forma do art. 1009 do CPC – No caso, não se trata de impossibilidade de rever o valor da multa, mas de se reexaminar questões que deveriam ter sido manejadas no curso da lide. O apelante, ao ter seu recurso de agravo de instrumento inadmitido, perdeu a oportunidade de impugnar o referido valor. As decisões judiciais não podem ser reapreciadas inúmeras vezes, sob pena de violar o princípio da segurança jurídica – Incabível, na espécie, fixação de honorários advocatícios, Aplicação da Súmula nº 279 do TJRJ – No que tange a aplicação da multa de 10% do art. 523 do CPC, também não é aplicável a hipótese. A astreintes já se caracteriza como punição ao descumprimento da ordem judicial e ao incidir a multa do art. 523 do CPC seria imposta uma dupla punição – Reforma parcial da sentença. RECURSO DO RÉU A QUE SE DÁ PARCIAL PROVIMENTO.
(TJ-RJ – APL: 00032322120128190058, Relator: Des(a). TEREZA CRISTINA SOBRAL BITTENCOURT SAMPAIO, Data de Julgamento: 13/11/2019, VIGÉSIMA SÉTIMA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 2019-11-29)
Ementa: PROCESSO CIVIL. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. OBRIGAÇÃO DE FAZER. DESCUMPRIMENTO JUDICIAL. COMPROVAÇÃO. MULTA COMINATÓRIA. COMINAÇÃO. PRECLUSÃO. NÃO OCORRÊNCIA. ASTREINTES. JUROS DE MORA. BASE DE CÁLCULO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS SUCUMBENCIAIS. NÃO INCIDÊNCIA. 1. A impugnação ao cumprimento de sentença é incidente processual idôneo a veicular pedido de exclusão de multa cominatória (astreinte). 2. Prevalece em vigor o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a decisão que comina astreintes não preclui, não fazendo tampouco coisa julgada. 3. O objetivo da fixação da multa diária é incentivar o cumprimento da obrigação determinada pelo juízo e sua natureza jurídica é de coerção, razão pela qual não possui caráter extensivo, compensatório, indenizatório ou sancionatório. Assim, é cabível a aplicação de astreintes como meio de obrigar o devedor a cumprir obrigação de fazer ou de não fazer. 4. Não é cabível a aplicação da multa e dos honorários advocatícios previstos no artigo 523, do Código de Processo Civil sobre valor resultante de astreintes, uma vez que não se trata de condenação em sentença, mas de multa coercitiva sobre descumprimento de obrigação de fazer. 5. Tanto o Superior Tribunal de Justiça quanto o Tribunal de Justiça do Distrito Federal têm entendido pela impossibilidade de incidência de juros moratórios sobre o valor resultante de multa diária por descumprimento de obrigação de fazer, sob pena de bis in idem, visto que ambos possuem a mesma natureza jurídica, qual seja, compensatória pela morosidade no cumprimento da obrigação, seja de pagar ou de fazer. 6. A multa cominatória aplicada para efetivação de tutela específica, por se tratar de medida de execução indireta, não deve integrar a base de cálculo para os honorários advocatícios de sucumbência, que incidirão, tão somente, sobre a obrigação principal objeto do cumprimento de sentença. 7. Recurso conhecido e parcialmente provido. (TJ-DF 0724975-73.2023.8.07.0000 1785039, Relator: MARIA DE LOURDES ABREU, Data de Julgamento: 09/11/2023, 3ª Turma Cível, Data de Publicação: 30/11/2023)
Inclusive, alguns tribunais, como o TJ/RJ, já fixaram entendimentos sumulares sobre a inaplicabilidade de honorários sobre tais valores, por não se tratar de efetiva condenação:
Nº. 279 “Os honorários advocatícios não incidem sobre a medida coercitiva de multa.” Referência: Processo Administrativo nº 0063259-81.2011.8.19.0000. Julgamento em 05/03/2012. Relator: Desembargador Valmir de Oliveira Silva. Votação unânime.
Tal determinação traz segurança jurídica, fornecendo paradigmas aos julgadores e fixando expectativas de valores e direitos a serem buscados pelos exequentes, além de limitar o valor a ser arcado pelo executado.
Conclui-se, portanto, pela inaplicabilidade de quaisquer encargos sobre as astreintes, tendo em vista sua natureza punitiva. A aplicação cumulativa das penalidades do art. 523 do CPC configuraria dupla punição, fato vedado pelo ordenamento jurídico.
Dessa forma, embora se trate de entendimento consolidado no ordenamento jurídico, ainda há necessidade de determinação sumular, demandando movimentação do Judiciário, principalmente das supremas cortes, para sua consolidação, a fim de evitar incidentes processuais desnecessários, que apenas culminam em insegurança jurídica.