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No artigo anterior dessa série sobre a proposta de atualização do Guia do Cade para os Acordos de Leniência Antitruste, apresentamos o que entendemos ser a quarta fase, atual, no processo de evolução do Programa de Leniência Antitruste do Cade, bem como discutimos prós e contras da proposta de expansão de ilícitos e de signatários dos Acordos de Leniência trazidos em sede da Proposta de Novo Guia de Leniência do Cade.1
Neste artigo, ainda referente à Parte I da Proposta de Novo Guia de Leniência do Cade, apresentamos comentários sobre as mudanças propostas referentes ao cartel em licitação, dosimetria das sanções, cessação da conduta, amplitude da confissão e leniência antitruste parcial.
Parte I. Aspectos gerais do Programa de Leniência Antitruste do Conselho Administrativo de Defesa Econômica
Há modificações propostas no Guia do Cade para os Acordos de Leniência Antitruste quando a prática também configurar um cartel em licitação. Para além da atualização da referência às novas legislações sobre o tema, destaca-se a menção à possibilidade de atração da lei do TCU – Tribunal de Contas da União e da lei anticorrupção, para além da lei de licitações e do CP, já anteriormente previstos.2
Foi incluída também a possibilidade de dosimetria da pena aplicada pelo Cade em caso de sanções aplicadas em outras esferas,3 consolidando uma interpretação já incorporada pela resolução 21/18 do Cade para contribuições pecuniárias em outras esferas (art. 124) e pelo Acordo de Cooperação Técnica de 2022, celebrado entre STF, CGU, AGU, MJSP e TCU.5 Sugere-se, neste ponto, a inclusão de expressa menção a estes diplomas legais na versão final do Guia, para possibilitar maior segurança jurídica aos administrados.
Houve também a inclusão de uma linguagem mais genérica sobre a obrigação de cessação da conduta,6 que pode sinalizar uma posição mais branda do Cade quanto a esse requisito. Essa linguagem mais ampla pode ser útil em especial em casos de cartel internacional em que uma autoridade estrangeira exija do colaborador a continuidade de participação na prática e o Brasil determine a cessação imediata, sendo que a cessação poderia vir a interferir na capacidade das autoridades públicas de obterem provas, por exemplo, a partir de buscas e apreensões. Para que houvesse maior segurança jurídica, e considerando a redação expressa do art. 86 da lei 12.529/11, que sinaliza no inciso II do §1º indica como requisito para a celebração do acordo que a empresa cesse completamente seu envolvimento na infração noticiada ou sob investigação a partir da data de propositura do acordo, sugere-se que essa linguagem mais genérica também venha a ser incluída na própria lei.
Houve também a exclusão de trecho que tornava necessária uma confissão ampla por parte do signatário do Acordo de Leniência na cláusula de confissão contida na minuta padrão de acordo. Assim, a confissão passa a ter escopo mais restrito, possivelmente para se evitar questionamentos sobre a existência de uma omnibus obligation,7 bem como questionamentos sobre eventual rescisão do Acordo de Leniência em decorrência do descumprimento específico dessa cláusula do acordo em caso de descoberta posterior de outras infrações cometidas pelo signatário.8 Trata-se de mudança alinhada à dinamicidade das investigações corporativas e à busca de uma constante colaboração com os signatários, ao longo de toda a instrução processual.
Outras mudanças relevantes e que visam a promover maiores incentivos ao Programa de Leniência dizem respeito justamente às regras aplicáveis à leniência parcial. Entendo que essas são as mudanças mais importantes a serem implementadas na Proposta de Novo Guia de Leniência do Cade, devendo ser também endereçadas em sede do RICade – Regimento Interno do Cade: (i) montante de desconto da multa ao signatário do acordo de leniência parcial, (ii) montante da alíquota da multa ao signatário do acordo de leniência parcial, (iii) atualização do faturamento para a base de cálculo da multa do signatário do acordo de leniência parcial.
Até a Proposta de novo Guia de Leniência do Cade, o signatário de um Acordo de Leniência Parcial não tinha segurança de que seu (i) desconto da multa (que pode variar de 1/3 a 2/3 da sanção aplicável) seria mais vantajoso do que um TCC. Casos julgados pelo Tribunal e artigos da doutrina9 expuseram essa insegurança jurídica, apontando os riscos de desincentivo ao Programa de Leniência Antitruste. Essa necessidade de alinhamento de incentivos entre a leniência parcial e o TCC foram endereçados, por exemplo, no julgamento do processo administrativo 08012.005255/2010-11 (Cartel Internacional de Placas de Memória DRAM),10 bem como no processo administrativo 08012.011980/2008-12 (Cartel Internacional de TFT-LCD), em que houve a redução de 2/3 da penalidade aplicável.
A partir da nova redação – necessária, a nosso ver -, o benefício concedido ao signatário da leniência parcial não deverá ser inferior ao maior desconto concedido a um compromissário em sede de TCC no mesmo processo, garantindo a lógica de incentivos de que uma leniência, ainda que parcial, deve ter mais benefícios do que acordos subsequentes. Nesse contexto, cumpre destacar que as regulamentações do BC – Banco Central11 e da CVM – Comissão de Valores Mobiliários12 são interessantes na definição de critérios para a avaliação dessa margem de desconto no caso de uma leniência parcial, o que aumenta a previsibilidade, a transparência e a segurança jurídica do programa de leniência. Sugere-se, assim, que esse avanço seja ainda aprofundado, com a proposta de parâmetros para esse desconto da multa do signatário do acordo de leniência parcial, seja no Guia, seja no RiCade.
Ademais, foram identificados casos em que a (ii) alíquota da multa aplicável à base de cálculo era diferente13 daquela aplicada aos TCCs anteriormente homologados pelo Tribunal. Assim, a Proposta de Novo Guia de Leniência do Cade – necessária, a nosso ver – indica que se deve adotar como alíquota máxima a menor alíquota aplicada ao compromissário de TCC, se for o caso. Essa menor alíquota dos TCCs será a alíquota base da leniência parcial (alíquota máxima), sobre a qual incidirá a individualização sancionatória e aplicação de atenuantes e agravantes. Finalmente, aplica-se o redutor legal de 1/3 a 2/3 da sanção aplicável da penalidade aplicável, que também terá um desconto necessariamente mais vantajoso que o maior desconto do TCC na investigação. Trata-se, assim, de um alinhamento necessário dos incentivos para Acordos de Leniência Total, Acordos de Leniência Parcial e TCCs.
Ainda mais interessante foi a proposta que visou a endereçar uma das principais discrepâncias – na visão dessa autora – até então aplicáveis aos casos de TCC em comparação com a leniência parcial, que tive oportunidade de sinalizar nas discussões do Grupo de Trabalho de Leniência do Cade14. Ao passo que o TCC tem o seu (iii) faturamento atualizado com base na SELIC até a data da sua homologação pelo Tribunal, a leniência parcial tinha seu faturamento atualizado com base na SELIC apenas ao final do processo, quando do seu julgamento pelo Tribunal. Em tempos de SELIC elevada, caso haja, por exemplo, a homologação de um TCC com 1 ano de instrução processual, o faturamento será atualizado com a SELIC de 1 ano. Por outro lado, o signatário do acordo de leniência, que foi justamente quem colaborou com a autoridade pública, aportando as informações e os documentos indiciais para a investigação, não tinha a possibilidade de “travar” essa atualização da SELIC, incorrendo em uma atualização do seu faturamento por um prazo indeterminado, que dependia do impulso da autoridade pública – cujo prazo médio para julgamento de casos envolvendo Acordos de Leniência é de mais de 7 anos15 -, e não de seus próprios esforços.
Essa situação ficou evidente em julgado do Tribunal do Cade, em que não foi autorizado, em sede de embargos de declaração, a trava da atualização da SELIC do signatário do acordo de leniência parcial.16 Assim, a nova redação17 é muito positiva, a nosso ver, pois visa justamente a garantir a lógica de incentivos de que uma leniência deve gerar mais benefícios do que acordos subsequentes – como é o TCC no caso do Cade , de modo que o signatário do acordo de leniência parcial terá seu faturamento de referência atualizado pela SELIC até a data da assinatura do acordo de leniência parcial, e não mais até a data do julgamento final do processo administrativo. Quando da definição dessa base de faturamento, novamente não se pode olvidar a necessidade de que a base de cálculo seja convergente com a dos TCCs anteriores, para que não haja aplicação de uma base de faturamento maior no Acordo de Leniência parcial do que aquela base utilizada em TCCs.
Outros três últimos pontos merecem destaque nessa parte inicial. Diante da inclusão expressa da possibilidade de celebração de ANPP – Acordo de Não Persecução Penal em casos de TCC, seria interessante que o Cade incluísse uma pergunta específica sobre as peculiaridades desse acordo, tal qual existe atualmente uma pergunta para ACP – Acordo de Colaboração Premiada.
Ademais, há o esclarecimento – também positivo – de que o signatário do Acordo de Leniência não fica impedido de contratar com instituições financeiras e de participar de licitações realizadas por órgãos públicos a partir da celebração do acordo, previsão esta aplicável aos demais envolvidos na infração que eventualmente venham a ser condenados a essa sanção não pecuniária18, nos termos do art. 38 da lei 12.529/11.
Ainda, especificamente sobre cartéis internacionais, o Cade reforça que mesmo nestes casos é necessária a participação do Ministério Público, Estadual e/ou Federal, na assinatura do acordo como interveniente anuente.
Nos próximos artigos dessa série, comentaremos as demais alterações propostas no Guia de Leniência do Cade, bem como sugestões de alteração no Guia, no Regimento Interno do Cade e/ou na própria lei 12.529/11.
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1 ATHAYDE, Amanda. Análise da proposta de novo Guia de Leniência do Cade: 4ª fase no processo de evolução do Programa de Acordos de Leniência Antitruste, a proposta de expansão de ilícitos e de signatários e a limitação da responsabilidade solidária do grupo econômico. Migalhas, 21 de janeiro de 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/423188/artigo-1–analise-sobre-proposta-de-novo-guia-de-leniencia-do-Cade..
2 Trecho destacado: “Um cartel que também cause dano ao erário, como o cartel para fraudar uma licitação pública, pode ser objeto de investigação e punição sob a égide de outras leis, tais como a Lei nº 12.846/2013 (“Lei Anticorrupção”), que protege a Administração Pública; a Lei nº 8.443/1992 (“Lei do Tribunal de Contas da União”), que visa a controlar e proteger as contas públicas; e a Lei nº 14.133/2021 (“Lei de Licitações”) e o Código Penal (artigo 337- F), que protegem a lisura dos processos licitatórios promovidos pela Administração Pública”. “Ainda na esfera administrativa, em caso de cartel para fraudar o caráter competitivo de licitação pública, além do Cade, são competentes para investigar o ilícito as Controladorias Estaduais e Municipais e os Tribunais de Contas, além dos órgãos de persecução (Ministérios Públicos e polícias).”.
3 Trecho destacado: “Em caso de leniência parcial relacionada à prática de cartel para fraudar o caráter competitivo de licitação pública, as sanções eventualmente aplicadas por outros órgãos poderão ser consideradas na dosimetria da multa a ser aplicada, pelo Tribunal do Cade, relativa aos mesmos fatos”.
4 Resolução 21/2018. Art. 12. A Superintendência-Geral do Cade e o Plenário do Tribunal do Cade poderão considerar como circunstância atenuante, no momento do cálculo da contribuição pecuniária em sede de negociação de TCC, ou no momento da aplicação das penas previstas nos arts. 37 e 38 da Lei nº 12.529/2011, o ressarcimento extrajudicial ou judicial, devidamente comprovado, no âmbito das Ações de Reparação por Danos Concorrenciais, considerada nos termos do art. 45, incisos V e VI da Lei 12.529/2011.
5 Acordo de Cooperação Técnico, celebrado entre CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO (CGU), ADVOCACIA -GERAL DA UNIÃO (AGU), MINISTÉRIO PÚBLICO FEDRAL(MPF), TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU) MINISTÉRIO DE JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA (MJSP), em matéria de combate à corrupção no Brasil, no âmbito de Acordos de Leniência. Disponível em: https://repositorio.cgu.gov.br/handle/1/68730.
6 Trecho destacado: “É importante esclarecer que a cessação da conduta elencada no art. 86, II, da Lei nº 12.529/2011 deve ser dar de maneira a preservar a proponente do Acordo de Leniência, evitando-se que fique evidenciada sua decisão de colaborar com a autoridade”.
7 HAMMOND, Scott. Cornerstones Of An Effective Leniency Program. Nov. 2004. “We will ask executives, who are subpoenaed and compelled to provide sworn testimony under penalty of perjury, not just about their knowledge of price fixing in the market under investigation, but whether they have any information of any cartel activity in any other markets as well. This last practice is commonly referred to as the “omnibus question.””
8 Buaiz Neto, José Alexandre; Athayde, Amanda. “Revisão de acordos de leniência: anulação, rescisão ou repactuação?” Migalhas, disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/402748/revisao-de-acordos-de-leniencia-anulacao-rescisao-ou-repactuacao.
9 Camila Pires da Rocha, Guilherme Antonio Gonçalves e Renata Gonsalez de Souza, “Leniência Parcial: Um Cheque em Branco?”, Revista IBRAC, publicado em 2 de novembro de 2023, disponível em: https://revista.ibrac.org.br/index.php/revista/article/view/19.
10 Nesse caso, o Tribunal entendeu que os signatários cumpriram com as obrigações previstas no acordo de leniência e concedeu o perdão máximo, redução de 2/3 da penalidade aplicável, conforme artigo 35-B caput e 35-C, parágrafo único, da Lei nº 8.884/94 (com correspondência nos arts. 86 e 87 da Lei nº 12.529/11) (Cade. Processo Administrativo nº 08012.005255¬2010¬11. Relator: Márcio de Oliveira Júnior. Julgado em: 28 nov. 2016).
11 Nos termos do art. 32 da Lei nº 13.506/2017, a declaração do BC incluirá a avaliação do atendimento das condições estipuladas no acordo, da efetividade da cooperação prestada e da boa-fé do infrator quanto ao cumprimento do acordo. Conforme os incisos do art. 91 da Circular BC nº 3.857/2017, o BC observará, nesse espetro variável de 1/3 (um terço) a 3/5 (três quintos), os seguintes elementos: “I – a importância das informações, documentos e provas apresentadas pelo signatário; II – o momento em que apresentada a proposta; e III – a boa-fé do signatário” (BRASIL. Banco Central do Brasil. Circular nº 3.857, de 14 de novembro de 2017. Dispõe sobre o rito do processo administrativo sancionador, a aplicação de penalidades, o Termo de Compromisso, as medidas acautelatórias, a multa cominatória e o acordo administrativo em processo de supervisão previstos na Lei nº 13.506, de 13 de novembro de 2017. Diário Oficial, Brasília, 21 ago. 2018. Seção 1, p. 30).
12 A Instrução CVM nº 607 prevê que a fixação do desconto, dentro do intervalo de 1/3 a 2/3 da pena, deverá ser calculada tendo como base: (i) a importância das informações, documentos e provas apresentadas pelo signatário; (ii) momento em que foi apresentada a proposta; e (iii) a colaboração individual de cada um dos signatários (art. 107, §2º, da Instrução CVM nº 607.
13 Discussão presente no Processo Administrativo nº 08700.003699/2017-31.
14 O Grupo de Trabalho Leniência Antitruste é uma iniciativa da Superintendência-Geral do Cade e iniciou os trabalhos em 2023.
15 BARRETO, Matheus Augusto Gomes. O Cade contra o relógio: um diagnóstico da morosidade das investigações de infrações da ordem econômica à luz da Lei 12.529/2011. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2024.
16 Cade. 08700.003699/2017-31.
17 Trecho destacado: “No caso da leniência parcial, deve ser considerado para a base de cálculo da multa-base o faturamento bruto da empresa no ramo de atividade afetado pelo cartel no último exercício anterior à instauração do Processo Administrativo (art. 37, I da Lei nº 12.529/2011), sendo possível aplicar parametrizações alternativas, de acordo com as especificidades do caso concreto, nos termos da jurisprudência do Tribunal do Cade (ver Guia de Dosimetria de multas de Cartel). O faturamento de referência será atualizado, pela SELIC, até a assinatura do acordo de leniência parcial”.
18 ATHAYDE, A. Sanções não pecuniárias no antitruste. [s.l.] Editora Singular, 2022.
Amanda Athayde
Professora doutora adjunta na UnB de Direito Empresarial, Concorrência, Comércio Internacional e Compliance, consultora no Pinheiro Neto. Doutora em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela UFMG e em administração de empresas com habilitação em comércio exterior pela UNA, ex-aluna da Université Paris I – Panthéon Sorbonne, autora de livros, organizadora de livros, autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos de livros na área de Direito Empresarial, Direito da Concorrência, comércio internacional, compliance, acordos de leniência, anticorrupção, defesa comercial e interesse público.