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Nos artigos anteriores dessa série sobre a proposta de atualização do Guia do Cade para os Acordos de Leniência Antitruste apresentei o que entendo ser a quarta fase, atual, no processo de evolução do Programa de Leniência Antitruste do Cade, bem como a proposta de expansão de ilícitos e de signatários de Acordos de Leniência trazidos em sede de consulta pública.1 Ademais, apresentei comentários sobre dosimetria das sanções, cessação da conduta, amplitude da confissão e leniência antitruste parcial.2 Neste artigo, apresento comentários sobre as propostas de nova fase prévia na negociação de Acordos de Leniência Antitruste e perspectivas as mudanças referentes à análise de disponibilidade do marker à luz dos critérios de “conhecimento prévio da infração” e “provas suficientes para assegurar a condenação”, disponíveis na parte II do Guia.
Parte II. Fases da negociação do acordo de leniência no Cade. Parte II.1. Fase prévia (opcional)
Uma substancial mudança incluída na Proposta de Novo Guia de Leniência do Cade diz respeito à inclusão de uma nova fase, prévia e opcional, no passo a passo de negociação de acordo de leniência no Cade. Se antes a negociação começava com o pedido de marker, será possível a realização de uma espécie de “consulta prévia e informal” com a SG/Cade. Segundo a Proposta, em caso de dúvida sobre a conduta em questão ser ou não objeto de um acordo de leniência, eventuais proponentes e/ou seus representantes legais poderão, de forma anônima, contatar a SG/Cade para discutir a prática em questão em abstrato, sem a obrigação de informar o setor, as partes envolvidas ou qualquer dado que possa identificar a infração anticompetitiva. Nesse caso, não será concedido marker, mas garantido o sigilo quanto às informações fornecidas.
Assim, trata-se de uma propositura informal na qual o proponente, sem divulgar sua identidade, fornece informações sobre o setor, escopo geográfico e duração estimada da conduta, juntamente com uma lista detalhada das evidências que divulgará em uma data acordada futura, comprometendo-se a apresentar tais evidências na íntegra se a SG informar que o conteúdo probatório indicado na lista satisfaz os requisitos para leniência. Nesse caso, não será concedido marker, mas garantido o sigilo quanto às informações fornecidas.
A nosso ver, essa é uma mudança bastante significativa, que poderá permitir uma aproximação entre a autoridade pública e os administrados em um cenário cada vez mais incerto quanto ao enquadramento de infrações concorrenciais. Inclusive, em um cenário de ampliação da interpretação de ilícitos passíveis de enquadramento para a celebração de Acordo de Leniência, essa parece ser uma medida necessária pela SG/Cade.
Parte II. Fases da negociação do acordo de leniência no Cade. Parte II.2. Primeira fase: pedido de senha (“marker”)
As alterações nessa seção específica da Proposta de Novo Guia de Leniência do Cade menos substanciais do que as anteriormente comentadas, apesar de relevante e de poderem ser objeto, ainda, de aprimoramentos. Houve a atualização de uma forma de solicitação do marker que já havia sido implementada pelo Cade em 2021,3 o “Clique Leniência“, consolidando uma prática da SG/Cade.
Ademais, foram realizados esclarecimentos sobre a disponibilidade do marker. A avaliação da disponibilidade ou não do marker foi ainda mais delimitada para quando “relacionado à mesma conduta”. Apesar dessa tentativa de delimitação, entende-se que ainda seria possível a realização de aprimoramentos no Guia e no RICade de pressupostos importantes para a avaliação de disponibilidade ou não de um marker. Atualmente temos o seguinte cenário teórico:
- Se há conhecimento prévio, com provas suficientes para assegurar a condenação: há a indisponibilidade do marker.
- Se há conhecimento prévio, mas sem provas suficientes para assegurar a condenação: o marker será de leniência parcial;
- Se não há conhecimento prévio, consequentemente sem provas suficientes para assegurar a condenação: o marker será de leniência total.
Não há ainda, porém, parâmetros claros para sinalizar o que se entende por “conhecimento prévio da infração” e “provas suficientes para assegurar a condenação”. Apesar dessa diferença conceitual, o Guia4 aponta para uma aproximação entre os conceitos, que merecem ser distintos. Entendo que o Cade deve propor parâmetros objetivos sobre o que se entende como “conhecimento prévio” a depender da fase processual do caso (procedimento preparatório, inquérito administrativo ou processo administrativo), já que esse é um elemento relevante para a existência de benefícios de leniência total ou parcial.
Nesse contexto, cumpre destacar que as regulamentações do BC5 e da CVM6, ainda que mais recentes do que a do Cade, são interessantes e promovem maior previsibilidade aos administrados quanto ao que se considera ser “conhecimento prévio” para a aceitação de uma leniência. Neste ponto, interessante mencionar que o BC7 e a CVM8 inclusive determinam claramente os parâmetros que são considerados para fins do desconto da multa no processo administrativo sancionador, garantindo maior previsibilidade aos administrados.
Uma vez superada a avaliação sobre o “conhecimento prévio” ou não, passa-se à avaliação sobre a existência ou não de “provas suficientes para assegurar a condenação”. A nosso ver, essa avaliação acaba ficando restrita aos casos de inquérito administrativo9. Seria o caso, por exemplo, de um inquérito administrativo no qual tenha sido realizada uma busca e apreensão, na qual já tenham sido encontradas evidências da conduta anticompetitiva. O fato de o caso estar ainda em fase de inquérito administrativo não significa, necessariamente, que haverá disponibilidade de acordo de leniência ao proponente, pois podem já constar nos autos evidências robustas de comprovação da conduta anticompetitiva. Já no caso de um Inquérito Administrativo em fase inicial ou mesmo intermediária, que não possui muitos elementos probatórios, seria possível permitir, sim, a assinatura de um acordo de leniência parcial, já que, apesar de possuir “conhecimento prévio” da conduta, o Cade não teria evidências suficientes para assegurar a condenação do proponente. A discussão em sede de inquérito administrativo, portanto, cinge-se à análise sobre se há ou não a possibilidade de iniciar a negociação do acordo de leniência parcial com o proponente.
Já em casos de procedimento preparatório, apesar de rotineiramente se ver a duração mais alongada de suas instruções, entendo que, pela sua natureza jurídica10, não se pode considerar que há sequer certeza da competência do Cade, de modo que também não se pode considerar que o Cade possui provas minimamente suficientes. Assim, modificando meu posicionamento anterior sobre esse tema, evoluo para entender que, em casos de procedimento preparatório não deve haver mais a discussão sobre a existência ou não de provas suficientes e insuficientes e leniência parcial ou total, havendo, a princípio, argumentos para ser automaticamente entendido como um caso de leniência total. Por sua vez, em casos de processo administrativo, também pela sua própria natureza jurídica, não se pode entender que não há provas suficientes, pois já houve a imputação aos administrados, inclusive o início da fase de contraditório e ampla defesa.
A árvore decisória abaixo sinaliza o que, a nosso ver, deveria ser o passo a passo de avaliação sobre a disponibilidade ou não do marker pela SG/Cade, a partir dos conceitos indefinidos “conhecimento prévio da infração” e “provas suficientes para assegurar a condenação”:
Nos próximos artigos dessa série, comentarei as demais alterações propostas no Guia de Leniência do Cade, bem como sugestões de alteração no Guia, no regimento interno do Cade e/ou na própria lei 12.529/11.
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1 ATHAYDE, Amanda. Análise da proposta de novo Guia de Leniência do Cade: 4ª fase no processo de evolução do Programa de Acordos de Leniência Antitruste, a proposta de expansão de ilícitos e de signatários e a limitação da responsabilidade solidária do grupo econômico. Migalhas, 21 jan. 2025. Acesso em: https://www.migalhas.com.br/depeso/423188/artigo-1–analise-sobre-proposta-de-novo-guia-de-leniencia-do-Cade
2 ATHAYDE, Amanda. Segunda parte da análise sobre a proposta de novo Guia de Leniência do Cade: Dosimetria das sanções, cessação da conduta, amplitude da confissão e leniência antitruste parcial. Migalhas, 3 fev. 2025. Acesso em: https://www.migalhas.com.br/depeso/423818/analise-novo-guia-de-leniencia-do-Cade-leniencia-antitruste-parcial
3 https://www.gov.br/Cade/pt-br/assuntos/noticias/Cade-lanca-plataforma-para-recebimento-de-pedidos-de-negociacao-de-acordos-de-leniencia
4 Trecho destacado: “Apesar de não haver na legislação brasileira o conceito expresso de “conhecimento prévio” da conduta pela Superintendência-Geral do Cade, entende-se que o conhecimento prévio apenas ocorre na hipótese de haver, à época da apresentação da proposta de acordo de leniência, procedimento administrativo aberto (arts. 66 e 69 da Lei nº 12.529/2011) com indícios razoáveis de prática anticompetitivas para apurar a infração objeto da proposta de acordo de leniência. Representações feitas por meio do “Clique Denúncia”, notícias na mídia ou informação sobre a existência de investigação em outro órgão da Administração Pública ainda não apuradas pelo Cade, dentre outras situações, em regra, não configuraram “conhecimento prévio” por parte da Superintendência-Geral do Cade, exceto se trouxerem elementos probatórios suficientes para ensejar a abertura de procedimento administrativo.”.
5 Art. 83-A. da Circular BC nº 3.857/2017. Recebida a proposta de acordo administrativo em processo de supervisão, o Banco Central do Brasil, no prazo de quinze dias, apurará a existência de: I – proposta de acordo administrativo em processo de supervisão sobre os mesmos fatos que tenha sido qualificada anteriormente; II – conhecimento prévio da infração noticiada; e III – provas suficientes para assegurar a condenação administrativa das pessoas físicas ou jurídicas envolvidas. § 1º As propostas que versarem sobre os mesmos fatos serão analisadas na ordem de recebimento. § 2º A ordem de recebimento das propostas será estabelecida considerando o dia e a hora do protocolo. § 3º As propostas apresentadas pelas pessoas jurídicas que se encontrem na situação prevista no § 4º do art. 30 da Lei nº 13.506, de 2017, e pelas pessoas físicas que não tenham sido a primeira a qualificar-se somente poderão ser qualificadas se identificarem envolvidos na prática ou apresentarem informações e documentos que comprovem a infração, que sejam desconhecidos pelo Banco Central do Brasil e que não constavam nas propostas anteriormente qualificadas. § 4º Para fins do disposto neste capítulo considerar-se-á que o Banco Central do Brasil tem conhecimento prévio da infração noticiada quando, na data de recebimento da proposta, houver registro de ocorrências ou de apontamentos decorrentes de procedimento de supervisão relacionados à infração noticiada. § 5º A proposta será rejeitada liminarmente na hipótese de o Banco Central do Brasil dispor de provas suficientes para assegurar a condenação administrativa das pessoas físicas ou jurídicas envolvidas. § 6º De posse das informações elencadas nos incisos do caput, o Banco Central do Brasil, no prazo de quinze dias contados do recebimento da proposta, decidirá sobre a sua qualificação ou rejeição liminar, comunicando, na sequência, sua decisão ao proponente. (BRASIL. Banco Central do Brasil. Circular nº 3.857, de 14 de novembro de 2017.
6 Art. 96. Resolução CVM 45/2021, que revogou a Instrução CVM nº 607. Art. 96. § 2º Caso requerido pelo proponente, o CAS deve emitir, no prazo de que trata o § 1º, um termo com a informação a respeito do conhecimento prévio ou não da infração noticiada pela CVM quando da propositura do Acordo de Supervisão. Art. 101. § 1º Para fins deste Capítulo, considera-se que a CVM tem conhecimento da infração noticiada na data: I – da adoção da providência de que trata o art. 5º desta Resolução; II – da proposta de inquérito administrativo de que trata o art. 8º desta Resolução; III – da conclusão de relatório de fiscalização ou semelhante que indique a ocorrência da infração, após a realização de inspeção in loco; ou IV – da decisão que suspender ou proibir atividades, nos termos do art. 9º, § 1º, da Lei nº 6.385, de 1976.
7 Art. 87 § 2º da Circular nº 3.857/2017.§ 2º Nos casos em que o Banco Central do Brasil tiver conhecimento prévio da infração noticiada no acordo administrativo em processo de supervisão, e nos casos das pessoas físicas que não se qualificarem em primeiro lugar, os seguintes critérios serão observados para a fixação da fração de redução das penas aplicáveis no processo administrativo sancionador instaurado para a apuração da infração de que tratar o acordo: I – importância das informações, documentos e provas apresentadas pelo signatário; II – o momento em que apresentada a proposta; e III – a boa-fé do signatário. (BRASIL. Banco Central do Brasil. Circular nº 3.857, de 14 de novembro de 2017.
8 Art. 107. Resolução CVM 45/2021, que revogou a Instrução CVM nº 607. Art. 107. Art. 107. Ratificado o Acordo de Supervisão pela CVM, deve ser decretada em favor dos signatários que primeiro se qualificarem: I – a extinção da ação punitiva da administração pública, na hipótese em que a proposta do Acordo de Supervisão tiver sido apresentada sem que a CVM tivesse conhecimento prévio da infração noticiada; ou II – a redução de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) das penas aplicáveis na esfera administrativa, na hipótese em que a CVM tiver conhecimento prévio da infração noticiada. § 2º Na hipótese do inciso II, do caput, o Colegiado deve observar os seguintes critérios para a fixação do percentual de redução das penas aplicáveis no processo administrativo sancionador instaurado para a apuração da infração de que tratar o acordo: I – importância das informações, documentos e provas apresentadas pelo signatário; II – o momento em que foi apresentada a proposta; e III – a colaboração individual de cada um dos signatários.
9 Art. 66 da Lei 12.529/2011. Art. 66. O inquérito administrativo, procedimento investigatório de natureza inquisitorial, será instaurado pela Superintendência-Geral para apuração de infrações à ordem econômica. § 1o O inquérito administrativo será instaurado de ofício ou em face de representação fundamentada de qualquer interessado, ou em decorrência de peças de informação, quando os indícios de infração à ordem econômica não forem suficientes para a instauração de processo administrativo.
10 Art. 66 da Lei 12.529/2011. § 2o A Superintendência-Geral poderá instaurar procedimento preparatório de inquérito administrativo para apuração de infrações à ordem econômica para apurar se a conduta sob análise trata de matéria de competência do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, nos termos desta Lei. § 3o As diligências tomadas no âmbito do procedimento preparatório de inquérito administrativo para apuração de infrações à ordem econômica deverão ser realizadas no prazo máximo de 30 (trinta) dias. § 4o Do despacho que ordenar o arquivamento de procedimento preparatório, indeferir o requerimento de abertura de inquérito administrativo, ou seu arquivamento, caberá recurso de qualquer interessado ao Superintendente-Geral, na forma determinada em regulamento, que decidirá em última instância.
11 Art. 69 da Lei 12.529/2011. O processo administrativo, procedimento em contraditório, visa a garantir ao acusado a ampla defesa a respeito das conclusões do inquérito administrativo, cuja nota técnica final, aprovada nos termos das normas do Cade, constituirá peça inaugural.
Amanda Athayde
Professora doutora adjunta na UnB de Direito Empresarial, Concorrência, Comércio Internacional e Compliance, consultora no Pinheiro Neto. Doutora em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela UFMG e em administração de empresas com habilitação em comércio exterior pela UNA, ex-aluna da Université Paris I – Panthéon Sorbonne, autora de livros, organizadora de livros, autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos de livros na área de Direito Empresarial, Direito da Concorrência, comércio internacional, compliance, acordos de leniência, anticorrupção, defesa comercial e interesse público.