Nepotismo licitatório   Migalhas

Nepotismo licitatório – Migalhas

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Sob a égide da sepultada lei Federal 8.666/93, havia vedação à contratação de servidor, dirigente, contratante e responsável pela licitação.

“Art. 9º Não poderá participar, direta ou indiretamente, da licitação ou da execução de obra ou serviço e do fornecimento de bens a eles necessários:

(..)

II- servidor ou dirigente de órgão ou entidade contratante responsável pela licitação.

§3º Considera-se participação indireta, para fins do disposto neste artigo, a existência de qualquer vínculo de natureza técnica, comercial, econômica, financeira ou trabalhista entre o autor do projeto, pessoa física ou jurídica, e o licitante ou responsável pelos serviços, fornecimentos e obras, incluindo os fornecimentos de bens e serviços a estes necessários.

§4º- O disposto no parágrafo anterior aplica-se aos membros da comissão de licitação” 

Na lei anterior a vedação era direcionada aos servidores responsáveis pela licitação. Não havia menção a parentesco de forma explícita, incidindo, eventualmente, na hipótese de”participação indireta”.

Ampliação das vedações ao nepotismo

A atual lei de licitações ampliou as vedações. Assim:

“Art. 14. Não poderão disputar licitação ou participar da execução de contrato, direta ou indiretamente:

(…)

IV – aquele que mantenha vínculo de natureza técnica, comercial, econômica, financeira, trabalhista ou civil com dirigente do órgão ou entidade contratante ou com agente público que desempenhe função na licitação ou atue na fiscalização ou na gestão do contrato, ou que deles seja cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, devendo essa proibição constar expressamente do edital de licitação;

Notemos que a lei faz uma lista de relações com a administração que, na prática, abrange qualquer vínculo com a administração (ou dirigente da administração) de um lado e parentes de servidores de outro.

Quem mantém, por exemplo, relação trabalhista com o município? Seus servidores, se forem celetistas. Desta forma a interpretação mais segura aos servidores públicos celetistas é a de que seus parentes estão proibidos de serem contratados. E os servidores estatutários? Também estão abrangidos na lista exemplificativa de vedações. Alguma relação o servidor estatutário detém com a entidade contratante (técnica ou financeira, por exemplo). Além disso o princípio da legalidade do art. 37, “caput” deve ser interpretado de maneira bem distinta do art. 5º, II no sentido de que deve haver uma lei expressa autorizando um comportamento. Não há lei autorizando e há lei vedando (ainda que por uma das interpretações possíveis).

A interpretação deve ser feita à luz da jurisprudência formada a partir da súmula vinculante 13 que trata do nepotismo no âmbito da contratação sem prévio concurso público de provas e/ou títulos. Por conta da analogia com a mencionada súmula vinculante é que, mediante licitação, a interpretação deve ser idêntica.

Uma interpretação mais formalista levaria à conclusão de que nem mesmo por licitação poderia haver contratação de licitantes com parentes na administração pública. Não comungamos com esse exagero hermenêutico que destruiria qualquer aplicação do princípio da eficiência.

O princípio da competitividade é o princípio através do qual devem ser interpretadas as regras licitatórias. Por este motivo, a simples vedação de participação em licitação de empresas com parentes no seio da administração pública criaria “monopólios artificiais” e vilipendiaria o princípio da competitividade.

Por outro lado, a contratação preferencial de parentes de membros da administração também vilipendiaria o princípio da competitividade já que, novamente, criaria “monopólios artificiais” e, pior, “monopólios artificiais nepotistas”, fulminando de morte o princípio da impessoalidade.

Princípio da competitividade

Necessário se faz compatibilizar o princípio da competitividade nas duas hipóteses: licitação e dispensa de licitação.

Mas se o local for uma acanhada urbe onde “todo mundo é parente”? O simples fato de se tratar de pequena cidade serviria de fundamento para a contratação direta de parentes por dispensa por valor? É a pergunta, em tom de afirmativa enrustida, que ecoa nos grotões tupiniquins.

Evidentemente que o tamanho pequeno da urbe não autoriza a pequena hermenêutica guiada pela, igualmente pequena, comodidade nepotista.

A questão é resolvida com a simples instauração de procedimento licitatório para valores que poderiam ser contratados diretamente em razão do valor. Se aparecer um único licitante (com grau de parentesco) estaria demonstrada a inviabilidade real de contratação de pessoas fora do grau de parentesco e, portanto, demonstrada, a reserva do possível. O que não é lícita é a simples contratação por mera alegação de que “todo mundo é parente”. Uma Prefeitura não pode ser mera reprodução da confusão entre público e privado descrita por Sérgio Buarque de Holanda.

E a interpretação de que a expressão “entidade contratante” seria sinônimo de “órgão” e não uma extensão da proibição “ao dirigente do órgão ou entidade contratante”. Assim, interpretar-se-ia que apenas parentes de dirigentes teriam a vedação.

Consideramos “forçada” a interpretação. Do ponto de vista da língua portuguesa a expressão seria redundante e desnecessária. Do ponto de vista jurídico subverteria o princípio da legalidade do art. 37 criando autorização para ato sem autorização expressa. Do ponto de vista da jurisprudência revogaria o princípio da “vedação do retrocesso social”. Historicamente, ressuscitaria as “sesmarias” administrativas. Sociologicamente, transformaria “Macunaíma” num padrão de ética e não um “anti-herói” descrito por Mário de Andrade.

Tendência da jurisprudência

Além disso, remaria contra todo o curso do rio jurisprudencial que sempre se inclina no sentido de limitar privilégios a parentes já que atentatório aos princípios da moralidade, da eficiência e da legalidade.

A própria súmula vinculante 13 surgiu a partir de uma mera resolução do CNJ (a resolução 07/05) no sentido de que a aplicação do princípio da moralidade sequer necessita de norma legal expressa.

No mesmo sentido, prossegue a jurisprudência, afastando formalismos e afastando até mesmo necessidade de iniciativa do chefe do Executivo para temas sobre nepotismo, privilegiando a eficácia plena do princípio da moralidade.

Assim, o C. STF fixou a tese de repercussão geral 29:

“Leis que tratam dos casos de vedação a nepotismo não são de iniciativa exclusiva do Chefe do Poder Executivo.” (grifos nossos).

No mesmo diapasão decidiu a Suprema Corte na tese de repercussão geral 66:

“A vedação ao nepotismo não exige a edição de lei formal para coibir a prática, dado que essa proibição decorre diretamente dos princípios contidos no art. 37, caput, da Constituição Federal”

No mesmo sentido o tema 1.001 do STF firmou-se a tese que até mesmo “normativos” podem vedar contratações. Assim:

“É constitucional o ato normativo municipal, editado no exercício de competência legislativa suplementar, que proíba a participação em licitação ou a contratação: (a) de agentes eletivos; (b) de ocupantes de cargo em comissão ou função de confiança; (c) de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, de qualquer destes; e (d) dos demais servidores públicos municipais.”

O tema de repercussão geral acima não abordou a proibição do art. 14, IV da lei 14.133/21 mas focou no tema da competência legislativa admitindo qualquer ato normativo para vedação ao nepotismo.

No caso concreto, aqui debatido, há lei. Ainda que interpretações “cômodas” possam enxergar no sentido de conferir menor eficácia ao princípio da moralidade, há lei vedando tais práticas atentatórias ao princípio republicano e ao princípio da isonomia. Não há, em nosso sistema jurídico, “princípio da comodidade administrativa” inobstante sua defesa intransigente pela classe política de menor qualidade.

Vedação ao retrocesso

Em síntese, a vedação ao retrocesso surgiu na Alemanha (na década de 1970) e é muito bem descrita por Canotilho e Ingo W. Sarlet. O tema sempre se relaciona com a vedação da redução de direitos fundamentais (sociais ou não). A vedação incluiria até mesmo redução de direitos por emendas constitucionais.

A vedação ao retrocesso social relaciona-se com a isonomia substancial e a necessidade de manutenção de direitos fundamentais através de políticas públicas.

Pensamos que a isonomia substancial restará fulminada de morte com a facilitação da contratação de parentes sem licitação.

Não é preciso ser um gênio para saber da viabilidade do “tráfico de influência institucionalizado” quando a empresa do parente de um servidor tem a facilidade que outros licitantes não tem: consultar (pelo parente) servidores que acabam fazendo “consultoria informal” ao amigo da secretaria ao lado. Tal hermenêutica revogaria, na prática, o crime de advocacia administrativa.

Exatamente nas acanhadas urbes é que esse tipo de promiscuidade ocorre com maior frequência e deve ser coibida em prol da isonomia. Além disso não existe direito adquirido ao nepotismo sendo irrelevante se a prática é comum no meio social. Estupros, tráficos de drogas e roubos são igualmente comuns.

Conclusão

O nepotismo licitatório do art. 14, IV deve ser interpretado em consonância com o princípio da competitividade. Pode haver a participação de parentes de servidores públicos no certame licitatório. Numa dispensa, porém a contratação direta de parentes é ilícita sendo que a mera alegação de que “todos são parentes” deve ser cabalmente demonstrada com a instauração de procedimento licitatório, ainda que o valor seja reduzido, já que é a única forma de demonstração da reserva do possível e inexistência de outros licitantes interessados. O parentesco com dirigentes da licitação merece outra análise, específica e detalhada, sob a ótica dos mesmos princípios já mencionados.

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1 “Raízes do Brasil’, Ed. Companhia das Letras, 2015, passim.

2 “Macunaíma”, Mário de Andrade, Ed. Garnier, 2000, passim. Personagem “anti-herói”

Laércio José Loureiro dos Santos

Laércio José Loureiro dos Santos

Mestre em Direito pela PUCSP, Procurador Municipal e autor do Livro, “Inovações da Lei de Licitações e polêmicas licitatórias”, 3ª Ed. Dialética, 2.024, versão em português e inglês.

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