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Taxa judiciária
Antonio Pessoa Cardoso*
A garantia constitucional de acesso à justiça, que serve para a realização efetiva dos demais direitos, seguida da exigência de custas judiciais são alternativas que, à primeira vista, se chocam. O acesso à justiça constitui direito fundamental do homem, contemplado na Constituição, pelos princípios do juiz natural, inc. LIII, artigo 5o; do devido processo legal, inciso LIV; do contraditório da ampla defesa, inciso LV; pela assistência jurídica integral e gratuita aos que necessitarem da tutela jurisdicional, inciso LXXIV, etc. O pagamento de custas judiciais para efetivação destes princípios, inseridos como dever do Estado, torna-se mais inaceitável na medida em que “a Justiça é o pão do povo”, na expressão do defensor dos oprimidos, Bertold Brecht. Todavia, este raciocínio perde sentido, quando se percebe a diversidade de pessoas, pobres e ricos, de situações, aqueles que buscam repetidamente os serviços judiciários e os que dificilmente batem às portas da justiça. A gratuidade irrestrita violaria outro princípio constitucional consistente na redução das desigualdades sociais, inciso III, art. 3o.
O enunciado acima presta-se mais para debates no terreno filosófico e acadêmico.
Daí, entretanto, colhe-se a lição de que o Estado tem a obrigação de facilitar o acesso de todos ao “pão do povo”, ancoradouro da dignidade do homem. A cobrança de custas judiciais de quem não pode pagar, sem prejuízo de seu próprio sustento e do de sua família, implica na criação de obstáculo ao acesso à justiça; a morosidade, na prestação dos serviços, penaliza o pobre e beneficia o rico.
O serviço judiciário é de ordem pública, portanto possuidor de conotação teleológica, inexistente na área empresarial; enquanto este segmento busca fundamentalmente o lucro, aquele persegue basicamente o interesse coletivo. Com esta visão, a lei cuida de fornecer aos agentes públicos recursos adequados para o pleno exercício da cidadania, portanto da dignidade humana.
O avanço do instituto da assistência jurídica, inciso LXXIV e a criação da Defensoria Pública como instituição essencial à função jurisdicional, art. 134, Constituição Federal, e Lei Complementar n. 80/94 inserem-se na conquista de facilidades para acesso do cidadão á justiça. Sabe-se que, em torno de 75% das ações que correm no Judiciário, envolvem o Poder Público que conta com os benefícios da gratuidade, além de outras vantagens de ordem processual, a exemplo, do prazo especial para contestar, duplo grau de jurisdição, ou seja, dois julgamentos, sendo um no juízo singular e outro no coletivo, etc. Tal situação mostra-se bastante semelhante com a do usuário que contrata e paga pelo plano de saúde, mas excede abusivamente na busca do médico e do laboratório. A diferença reside no fato de que o consumidor paga pelos serviços, enquanto o Estado nada despende com a agravante de descumprir propositadamente as leis, sonegar legítimo direito do cidadão e servir-se de expedientes escusos, através de profissionais habilidosos e bem pagos, para postergar no cumprimento de decisões judiciais. E o pior é que a mega-estrutura montada para fazer justiça torna-se mais cara, mais morosa exatamente por culpa do Estado, que desvia a finalidade maior do Judiciário, garantia do direito do cidadão, e joga para o caminho político, servir aos caprichos dos detentores eventuais do Poder.
O Estado, responsável pela ordem política, social e econômica do povo, usa e abusa dos serviços judiciários, fundamentalmente porque desrespeita os direitos do cidadão e provoca o chamamento do Judiciário para dirimir o conflito. Confia na morosidade da justiça e selar a validade da expressão VÁ PROCURAR SEUS DIREITOS, utilizada, em larga escala, pelos caloteiros para não pagar o que deve.
A legislação sobre a matéria reflete o absoluto descaso do Estado, quando estabelece altas custas, elitizando os serviços judiciários e aumentando a massa dos excluídos, em flagrante violação a princípios constitucionais.
Ao lado deste quadro de dureza implacável com os carentes, aparece outro de infinita benevolência, a guerra fiscal entre os Estados. Trata-se da anistia de impostos em troca de novos investimentos, operação que exige redução ou até mesmo isenção de impostos para os empresários, causando evidentemente maiores encargos para a classe média, a exemplo das crescentes taxas judiciárias.
A seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil movimenta-se contra a Lei n. 11.608 de 29/12/2003, e sob sua provocação o Conselho Federal da OAB ajuizou em início do corrente mês uma ADIn, com pedido de liminar, contra referida lei que foi regulamentada pelo Provimento n. 833 de 8/1/2004, em vigor desde janeiro/2004.
O valor da taxa judiciária toma por base a UFESP, Unidade Fiscal do Estado de São Paulo, e, no corrente ano, cada UFESP vale R$12, 49, contra R$11,49 no ano de 2003.
A nova lei aumentou o preparo do recurso de apelação de 1%, lei anterior, para 2%. Manteve o percentual de 1% para distribuição e execução de sentença, mas o valor mínimo foi fixado em cinco UFESP, ou seja, R$62, 45, cobrança inexistente anteriormente.
Ao lado deste rigor fiscal, mais uma vez há favorecimento para os mais ricos, pois as ações com valores altos tiveram custas menores. Enquanto paga-se R$6,91 para demandas com valor de até R$46, 99, ou seja, percentual de 14,71%, desembolsa-se R$2.987,76 para causas com valor de R$500.000,00, ou seja, percentual de apenas 0,6%.
O tratamento desigual acentua-se na medida em que aumenta o valor patrimonial: R$20.000.000,00, paga-se menos de 0,2%; R$100.000.000,00 despende-se menos de 0,04%.
Na área recursal, não se entende o tratamento diferenciado dispensado à taxa de retorno na apelação e no agravo de instrumento: naquela, apelação, incide a taxa de retorno de R$17, 78, no agravo cai para a metade, R$8,89. No recurso de apelação ainda se cobra 2% sobre o valor da causa, a título de preparo e no agravo o montante é fixo, R$124,90. Registre-se que a taxa de retorno aumenta na medida em que o processo cresce de volume, padronizado em 200 folhas cada.
Nas ações de inventários, arrolamentos, causas de separação judicial e de divórcio, e outras, em que haja partilha de bens ou direitos, o contribuinte, cujo monte mor é da ordem de R$ 50.001,00, está sujeito ao pagamento de tributo em idêntico valor ao outro que possua patrimônio correspondente a R$ 500.000,00. É o que está disposto no § 7. ° art. 4. ° da Lei Estadual n. ° 11.608/03 ao fixar em 100 UFESP, ou seja, 1.249,00 a taxa para as causas com valores compreendidos entre R$50.001,00 e R$500.000,00. O primeiro, patrimônio de R$50.001,00, paga 2,5% sobre o acervo, enquanto o segundo, bens que alcançam o valor de R$500.000,00, desembolsa a mesma importância R$1.250,00, correspondente a apenas 0,25% do patrimônio. Se este for igual ou superior a R$5.000.000,00 paga-se 3.000 UFESP, ou seja, R$37.470,00, incidindo um percentual máximo de 0,75%.
A isenção de custas acontece para causas cujo valor não ultrapassa a R$50.000,00. Preocupa-se aqui com a desigualdade de tratamento na progressividade dos encargos relativos às taxas judiciárias.
Na Bahia, a Lei 7.753, editada no ano 2000, dispõe sobre a tabela de custas no Estado. Como na maioria dos estados, existe a discriminação, na medida em que se fixa alíquota bem mais alta para causas com valores menores. O valor da causa para pagamento de custas inicia-se com R$46, 99, menos de 20% do salário mínimo, e chega ao teto máximo de R$297.379,86.
Em Brasília, para apuração das custas em processo de inventário e arrolamento, fixou-se o valor mínimo dos bens, em R$4.000,00, quando se paga R$163, 50, percentual de R$4,1% e alcança-se o valor máximo do monte mor em R$162.000,00, percentual aproximado de 1,2%, sobre o qual se paga 1.944,00.
A Constituição Federal, parágrafo 1. °, art. 145 determina:
“Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte…”
As leis que regulam as taxas judiciárias nos Estados mostram desinteresse na implementação dos objetivos fundamentais traçados pela Constituição, quais sejam, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais. (art. 3o. Constituição Federal).
Tratam com absoluto descaso o disposto no inciso III, artigo 3o da Constituição e é significativo o distanciamento do caminho para erradicar as desigualdades sociais no País.
As leis sobre taxa judiciais não observam os princípios constitucionais da igualdade e da capacidade contributiva. O fato gerador para o tributo enunciado é o mesmo e os contribuintes com diferentes capacidades contributivas estão sendo obrigados a recolher em igual valor, não guardando relação alguma de proporcionalidade. Quem tem mais, paga menos tributo e quem tem menos paga mais tributo.
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* Juiz em Salvador
Atualizado em: 23/6/2004 12:30
Antonio Pessoa Cardoso
É advogado do escritório Pessoa Cardoso Advogado