Há cem anos !
Promovendo a compilação dos dispersos de Raimundo de Farias Brito*, o saudoso filósofo Carlos Lopes de Mattos** encontrou um documento que hoje, neste 11 de agosto, completa exatos 100 anos.
No dia 11 de agosto de 1904, Farias Brito proferia uma memorável oração na Faculdade de Direito do Pará, por ocasião de uma sessão magna realizada para comemorar a instituição dos cursos jurídicos.
“O modo diverso de apresentar as idéias reforça o conhecimento de suas teses do direito subordinado à concepção do mundo e corporificação do ideal.” Carlos Lopes de Mattos
“O pensamento de Farias Brito é um ponto de chegada e, ao mesmo tempo, um novo ponto de partida da filosofia praticada no Brasil.” Luís Washington Vita
Como o discurso do filósofo cearense continua mais atual do que nunca, Migalhas homenageia hoje todos os profissionais do Direito, resgatando também esse texto maravilhoso.
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Sobre o valor dos estudos jurídicos***
Discurso proferido na Faculdade de Direito do Pará, em 11 de Agosto de 1904, por ocasião de uma sessão magna realizada em comemoração da organização do ensino do Direito no Brasil
DISCURSO
Proferido na Sessão Magna realizada na Faculdade de Direito do Pará no dia 11 de Agosto de 1904, em comemoração da Organização do Ensino do Direito no Brasil
Exmo. Sr. Dr. Governador do Estado.
Exmo. Sr. Senador Intendente Municipal.
Exmo. Sr. Delegado Fiscal do Governo da União.
Srs. Professores.
Srs. Acadêmicos.
Exmas. Senhoras.
Meus Senhores:
Por que se acham aqui reunidos os moços para solenizar o prestígio de uma data? Por que se acham reunidos os velhos, aqueles que já entraram na fase positiva da vida, acompanhando este sonho da mocidade?
Senhores: eu vejo nisto a solução prática de um gravíssimo problema: a consagração solene, a fórmula repetida e constante, a afirmação permanente de uma aspiração que é o sonho de todos os tempos e a ilusão de todos os povos.
Sonho, mas sonho que se transforma em realidade; ilusão, mas ilusão que avigora e sustenta e é o princípio que prepara a obra do futuro: o reconhecimento de um estranho mistério no fundo de nossa existência; a convicção de uma força cujo poder se estende às extremidades do mundo; o sentimento vivo e perpétuo da necessidade contínua de um ideal permanente para cujas aspirações não há limites no espaço; prova da significação transcendente da vida; demonstração positiva da preponderância da idéia sobre o elemento material da existência.
Na luta da vida, meus senhores, o que importa não é vencer, nem ser vencido; porque vencidos seremos todos. A vida é um combate de que só se pode sair vencido; e na evolução do tempo grandes e pequenos, fracos e poderosos, humildes e potentados, todos terão de desaparecer na poeira do nada. O que importa, pois, é compreender e explicar; o que importa é penetrar esse mistério e entrar na compreensão racional desta situação em aparência desesperadora! É preciso justificar a vida; é preciso interpretar a natureza. O homem, como o universo, deve ser uma obra de razão, não da fatalidade. É a significação da força misteriosa que sentimos em nós e nos impulsiona irresistivelmente para um ideal desconhecido, a despeito desta mesma contingência insuperável do nada. Sabemos que o tempo é como um oceano infinito em cuja espécie boiamos como simples fragmentos de espuma que a onda ao mesmo tempo faz e desfaz. Fatalmente teremos de ser submergidos. A obra do homem é coisa contingente e, por mais extraordinárias que sejam as nossas conquistas, nada poderá escapar à lei de destruição. Os séculos vão lentamente passando por cima dos fatos e da história, e na sua marcha insensível, mas contínua, tudo vão arrastando, tudo vão derruindo, por tal modo que nada do que foi feito ficará de pé; e obras e monumentos, as mais admiráveis produções do engenho humano, as maravilhas da indústria e os prodígios da arte, as construções gigantescas da arquitetura, as maravilhas da riqueza, os trabalhos assombrosos da arte, da ciência, tudo será desfeito, tudo será esquecido; e as obras mesmas que têm relação mais direta com os destinos da espécie, as produções que são a conseqüência das convulsões da sociedade, as conquistas que são o resultado das revoluções dos impérios, as obras do trabalho secular, as civilizações e as cidades, tudo se desfará em pó. O que foi feito dos homens, fundadores dos primeiros estados? O que foi feito das cidades, primeiros centros da civilização? Em vão se esforça a ciência por fazer reviver esse passado morto, revolvendo as idades remotas, escavando ruínas. Chega um momento em que tudo se perde na noite da inconsciência, como se fosse uma verdade que tudo vem do nada e que tudo tem de voltar fatalmente ao nada.
É uma dura verdade a cujo reconhecimento é impossível fugir. Mas como se explica, apesar disto, que trabalhamos todos, como se estivéssemos cooperando para uma obra, que tivesse de ser eterna? É uma incompreensível antinomia. Sabemos, por um lado, que tudo terá de desaparecer fatalmente no oceano do tempo; e sentimos ao mesmo tempo que palpita no fundo de cada coração o sentimento vivo de um ideal que tem por aspiração o infinito. É por isto que as obras d’arte sempre nos interessam, se bem que o belo possa ser definido nos termos de Renouvier – “aquilo que agrada sem ter utilidade”. É por isto que não podemos ser indiferentes às aspirações da inteligência e é uma verdade que todas as suas manifestações nos impressionam profundamente, se bem que o utilitarismo da época só encontre justificação para as agitações a que somos atraídos pelo interesse do ganho. Será que o que constitui o fundo mesmo da existência seja uma contradição insanável?
Não, meus senhores; não pode ser isto. Eu tenho convicção firme e inabalável de que tudo o que existe, é racional e legítimo. Se a natureza nos parece contraditória, é que nós não a compreendemos; e se a vida, de alguma sorte, se nos afigura como uma coisa injustificável, é que não possuímos a compreensão da sua verdadeira e legítima significação. Daí o interesse que ligamos às coisas da inteligência. É este o mais nobre e o mais poderoso sentimento do homem, e também aquele de que dependem a segurança da sociedade e a solução dos grandes problemas que são a preocupação contínua do espírito.
É sob a ação deste sentimento que nos achamos reunidos aqui. Esta reunião envolve, pois, um grande problema de ordem social e moral. É deste problema que me vou ocupar em rápidas linhas. Não o poderei estudar em toda a sua extensão e sob as suas múltiplas faces, porque para isto não dispomos do tempo necessário, nem é próprio o momento. Mas é com o máximo interesse que me esforçarei por dar uma idéia precisa da alta significação moral, política e até religiosa da questão de que se trata.
Esta questão pode ser formulada nestes termos: Por que tão grave e tão profundamente nos impressionam as coisas da inteligência? Por que se organizam corporações para investigar o desconhecido? Por que tanto nos esforçamos pela conquista da verdade? Por que estudamos e desejamos conhecer a natureza? E note-se que, por mais precárias que sejam as condições de cada país, para isto se fazem sacrifícios ingentes e é para isto que devem tender os esforços superiores dos homens de Estado, por tal modo que é, em particular, o ensino público que constitui ou pelo menos deve constituir a obrigação suprema do governo. Também o grau de desenvolvimento e progresso de cada povo se mede exatamente pelo grau de cultura nacional. De maneira que são precisamente a riqueza da literatura, o desenvolvimento das ciências, a elevação intelectual e moral dos cidadãos que dão a medida das civilizações. Um povo sem literatura é como uma árvore sem fruto. Como se explica tudo isto?
Tudo isto se explica, meus senhores, por este único fato: que o conhecimento é a necessidade fundamental do espírito humano. Todos os outros elementos da vida são meios para o exercício das múltiplas funções em que se resolve a nossa atividade; mas o conhecimento é o fim, o destino da existência mesma. É a minha convicção mais profunda. E podem muitos trabalhar pela conquista da fortuna; podem outros almejar o prestígio da glória, já pelas vitórias da guerra, já pelos triunfos da arte; podem outros ambicionar a força e o poder: tudo isto se justifica e tudo isto tem a sua razão de ser no conjunto das forças vivas que colaboram para a obra comum da atividade social. Mas eu penso que o ideal supremo, que a atividade a que todas as outras atividades devem estar subordinadas, que a força dominadora de todas as forças, que o princípio superior da vida é a ciência. E esta festa mesma, o entusiasmo de todos pela data em que foram criados no nosso País os institutos jurídicos; o fervor da mocidade esperançosa; a alegria dos discípulos e o interesse dos mestres, tudo isto o que é senão um reconhecimento tácito, uma confirmação espontânea desta grande verdade?E é preciso notar que são precisamente as escolas de direito que representam o grau superior da cultura geral de cada povo. Neste ponto não sem razão foi que Augusto Comte, colocou no alto da escala de sua classificação hierárquica das ciências, a sociologia, ciência que pretendeu organizar como a síntese definitiva das ciências sociais e morais. Tal ciência se afigurava ao pensamento do fundador da filosofia positiva como devendo constituir a unidade fundamental no sistema da filosofia moderna. Não vem aqui ao caso discutir a legitimidade da obra de Comte, e em particular a legitimidade da sociologia. Basta o reconhecimento da benemerência e alta significação cultural das ciências morais e jurídicas.
As ciências jurídicas tiveram, não obstante, em nosso País, a sua época de grave desprestígio. Foi isto não há muito e já depois do estabelecimento da República. Atribuíam-se os males da pátria aos homens do direito. Confundia-se o direito com a metafísica banal das vãs combinações de palavras vazias de sentido. Daí uma guerra desenfreada, brutal, e, o que é mais notável, esta guerra era movida, em grande parte por homens que se diziam positivistas: anomalia facilmente explicável como mais uma entre as muitas anormalidades próprias das épocas de convulsão revolucionária. O fato chegou mesmo à prevenção sistemática e à perseguição odienta. Mas a coisa passou e já hoje é inteiramente diverso o ponto de vista preponderante. A razão voltou aos espíritos desordenados e de novo se restabeleceu nas consciências a convicção de que é somente pela cultura geral, e especialmente pela cultura do direito, que o nosso País se poderá elevar à posição eminente a que está destinado pelas suas condições naturais e históricas.
É difícil acreditar, senhores, que tenha havido uma época em que chegou a ser o pensamento dominante em nossa pátria – que o estudo do direito era prejudicial à cultura do espírito e em particular funesto para a direção da sociedade. A tanto não autorizava mesmo o pensamento de Augusto Comte, se bem que condenasse o princípio do direito como um princípio metafísico. O que por isto entendia o fundador do positivismo era que não a noção do direito, mas somente a noção do dever devia ser consagrada em um sistema positivo de moral; o que, entretanto, não quer dizer que deva ser condenada a ciência do direito como ciência das normas objetivas da conduta. Mas os positivistas brasileiros, na sua cegueira e no seu ódio implacável contra os cultores do direito, transportavam a questão do ponto de vista subjetivo para o ponto de vista objetivo, e confundindo o direito como faculdade de agir com o direito como norma de agir, terminaram por envolver na sua condenação tanto o direito subjetivo, como o direito objetivo, apelando para um sistema arbitrário e fantástico de organização que afinal só poderia ser demonstrado e imposto pelo argumento positivo da espada e do canhão. Era um sistema de organização social que deveria ser compreendido à maneira das composições artificiais da mecânica, fazendo-se a aplicação na ordem política das idéias fundamentais da física social de Augusto Comte.
Mas cedo se compreendeu que tudo isto não passava de uma fantasia de loucos, ou, pelo menos, de uma aventura perigosa de espíritos desorientados. A reação logo se operou com a necessária energia, tornando-se fato da compreensão mais comum que os destinos da pátria não podiam ficar entregues às ambições mais ou menos fantásticas de seitas visionárias. O positivismo ficou assim reduzido às suas aspirações religiosas, abandonando o campo da política, e refugiando-se no templo já quase deserto e semi-morto da Humanidade, no Rio de Janeiro; e o direito voltou à sua antiga consagração. É assim que o ensino do direito foi reabilitado em todo o País, e como um protesto decisivo contra o anátema que fora lançado contra o direito, sucedeu que diversas obras saíram à luz, sendo talvez neste período que foram publicados os monumentos mais importantes da literatura jurídica nacional. Criaram-se na Capital da República e nos Estados mais importantes, diversas faculdades de direito. O Pará teve de acompanhar o pensamento geral do País nesta obra fecunda de regeneração, e foi assim que surgiu esta escola. E agora mesmo cogita o Governo da União de dotar a República com um Código civil e para esta obra hão cooperado os espíritos mais cultos do País. O projeto já foi confeccionado e devidamente estudado e meditado, breve será adotado como lei. Tal é, pelo menos, a preocupação dominante da Nação.
Mas realmente, meus senhores, esta reação em favor do direito era inevitável, nem podia deixar de se dar. Toda ciência é uma sistematização de leis. A matemática é a sistematização das leis referentes às relações de extensão e quantidade entre os corpos. A astronomia é a sistematização das leis que regem o movimento dos corpos celestes, a mecânica dos astros. As ciências físico-químicas são a sistematização das leis da matéria inorgânica. As ciências naturais são a sistematização das leis da matéria organizada. Do mesmo modo as ciências morais e jurídicas são a sistematização das leis que regem a existência do homem. Como se compreende que as leis que regem a nossa própria existência sejam absolutamente sem importância para nós? Já não digo isto. Como se compreende que estas leis sejam menos importantes para nós do que as leis da natureza? Já o velho Sócrates dizia: – conhece-te a ti mesmo -; e nisto fazia consistir o começo da sabedoria. Agora muda-se o ponto de vista, e uma escola de pensadores revolucionários se apresenta e diz: o que importa conhecer são as leis da mecânica, as leis matemáticas. Outros ainda se apresentam depois e opinam: o que importa conhecer para tratar da organização da sociedade, é a vida dos animais e das plantas; é a transformação por que têm passado diversas espécies orgânicas, a disposição anatômica e a aptidão fisiológica e mais em particular, a composição celular dos organismos.
Contra esta invasão dos sábios e naturalistas no domínio particular dos juristas, devemos protestar e protestar energicamente. Não! – devemos bradar a todos. Para tratar da organização das sociedades, o que importa conhecer é a consciência mesma do homem e as leis por esta ditadas.
E é preciso acentuar que há das leis ditadas pela consciência, isto é, das leis morais e jurídicas, para as leis naturais, uma diferença que não pode ser esquecida, uma diferença radical. As leis naturais são abstrações do nosso espírito; as leis morais e jurídicas são fatos da natureza. As primeiras são as leis abstratas, subjetivas, portanto, e meramente formais ou fenomenais; as segundas são leis concretas, objetivas, substanciais. Eu me explico. Quando o sábio formula uma lei natural, apenas dá expressão a uma representação abstrata da ordem dos fenômenos, na espera particular dos fatos que foram objeto de sua observação. Essa lei é uma simples abstração que nenhuma influência poderá exercer na marcha daqueles mesmos fenômenos. É assim, por exemplo que a lei da gravitação foi descoberta, mas o homem, mesmo conhecendo ou tendo formulado essa lei, é impotente para mudar o curso dos astros. Não acontece o mesmo com as leis morais e jurídicas. Quando o moralista estabelece um princípio ou o homem de Estado decreta uma lei, esse princípio do moralista ou essa lei do homem de Estado, é um fato substancial que se objetiva em norma de conduta e vai servir como princípio determinante para as ações e por conseguinte exercer ação como força viva na dinâmica da sociedade.
Razão tem, pois a mocidade estudiosa para solenizar a data de hoje que lembra a inauguração do estudo do direito em nossa pátria. Isto em particular nos interessa, por se tratar da ciência que é objeto especial do nosso estudo. Mas o fato tem também a mais alta significação em relação com a cultura geral, porque o direito tem por objeto precisamente o estudo da natureza humana, o estudo da nossa própria natureza, e por conseguinte nenhuma ciência pode ter para nós maior interesse. A medicina também tem por objeto o estudo do homem; mas aí o homem é estudado somente em seu elemento material e orgânico. É somente no direito, como um dos ramos mais importantes da ciência moral, que o homem é estudado em sua vida moral e psíquica; e nós sabemos que é precisamente a vida moral e psíquica que constitui, em sua essência, a natureza do homem. Trata-se, pois, em particular, da ciência que com razão deve ser considerada como a mais alta aspiração do espírito: é o ponto de convergência de todos os esforços da inteligência. Demais já não se considera o homem isoladamente, mas em comunhão com os outros homens, de maneira que o direito em rigor não tem por objeto o homem, mas a humanidade. E mais ainda: o direito se resolve em normas de conduta. Trata-se de fixar em regras positivas que devem ser asseguradas coativamente pelo poder ou pela autoridade, as leis do nosso dever. Ora, o dever só pode ser deduzido, elevando-se o homem à compreensão do seu destino, e este pode ser legitimamente interpretado por uma compreensão racional da natureza. O direito supõe assim ao mesmo tempo a filosofia e as ciências, por onde se vê que representa, na escala do saber, o ponto culminante. É, pois, a manifestação mais alta do ideal.
Ora, é um fato que se impõe de modo irresistível que é somente pelo ideal que nos poderemos liberar da situação intolerável a que nos reduzem as vicissitudes da vida, quando é sabido que estamos inevitavelmente destinados à destruição e à morte. Aqui eu volto ao ponto de partida de meu discurso e renovo a questão que levantei em começo: Como se explica que fatalmente teremos de ser destruídos pelo tempo, e, não obstante, trabalhamos com fé e convicção, como se fôssemos operários de uma obra infinita? Como se resolve esta estranha e dolorosa antinomia: a afirmação e a negação, o ser e o nada? É o problema de Hamleto, a eterna cogitação do espírito humano.
Isto se explica, senhores; e aqui mesmo eu vejo no fervor com que neste momento se manifesta a mocidade, uma vaga intuição da verdade. Este interesse realmente demonstra alguma coisa. Se nós nos interessamos pelos sonhos de nossa imaginação, se nos apaixonamos pelas aspirações de nossa alma, pelos desejos de nosso coração, tudo isto deve ter uma explicação, nem se pode considerar como simples quimera. É que sem dúvida existe nas profundezas de nossa organização uma atividade estranha cuja significação real nos escapa. E se a mocidade se agita pela fascinação de uma idéia, é que a idéia é força; e de fato é força, e força dominadora que tem o poder de reagir contra os elementos de destruição a que estão sujeitas as forças da matéria. Isto quer dizer que, contra a ação destruidora do tempo, cada um tem dentro de si mesmo uma força que resiste. Esta força é o princípio criador do ideal; – do ideal que se resolve em uns neste sonho vago e indefinido, nesta agonia indescritível, misto de desespero e volúpia que leva às criações fantásticas da arte; – do ideal que se resolve em outros nessa energia dominadora que vence as multidões, impondo lei às vontades e organizando a sociedade, pela submissão das vontades particulares à vontade geral; – do ideal que se resolve em outros nessa paixão irresistível da verdade que faz do espírito uma luz que tudo penetra e leva a descobrir as leis do ignoto, alargando a esfera do saber, desenvolvendo o conhecimento e fundando ciências. Esta força existe em grau mais ou menos elevado em todo o homem. Neste sentido pode-se dizer que todo homem é um corpo arrastado por uma idéia. Porém o corpo pode ser mais ou menos pesado; a idéia pode ser mais ou menos esclarecida. Entre estes dois elementos dá-se, pois, uma relação que está sujeita a inúmeras variações. Quando o corpo prepondera em absoluto, a idéia é absolutamente impotente para dominá-lo. Neste caso o homem representa o grau zero na esfera do desenvolvimento moral. Tudo se rege aí exclusivamente pelas leis da matéria. É o que se poderia chamar a solução do problema da vida pela alternativa do nada. Este homem, ou mais precisamente este corpo só se deixa trair pelo corpo; a idéia é nele como um gérmen atrofiado e sem vida, nem pode nele exercer nenhuma influência. Mas há também combinações em que a idéia é o elemento preponderante. Então há mais sofrimento, mas também começa a vaga intuição de que fazemos parte de um todo infinito e de que, como esse todo infinito, somos igualmente indestrutíveis e eternos. Se a preponderância chega a tomar proporções grandiosas, então o corpo como que de todo se anula, e o homem começa a viver, por assim dizer, sub specie aeternitatis. É a situação do estóico. Neste caso o homem já não está sujeito sequer ao sofrimento. A dor não o atormenta, nem o faz desesperar, porque ele sabe que toda a dor é passageira. A glória o não fascina porque ele sabe tudo é vão e ilusório no que seduz a vaidade do espírito. É a situação de Spinoza para quem só a posse da verdade é um bem verdadeiro; é a situação de von Hartmann que, muito moço, já não tinha aspirações, nem desejos, e vivia somente para o seu pensamento.
Nesta situação o homem parece que se anula, mas em verdade é força criadora. A multidão ignara poderá imaginar que aquela imobilidade é a morte; mas em verdade é ali que está o princípio da vida. Naquela paz inalterável, naquela serenidade profunda há a fermentação do ignoto. Há febre naquela frieza aparente; há delírio naquela febre que é uma sede perpétua. O homem investiga, o homem observa. Poder-se-á supor que de todo se anula, mas em verdade se sente eterno em sua obra, pela convicção da identidade de sua existência com a existência universal. É deste trabalho misterioso e estranho, o mais das vezes anônimo, que resulta a criação do ideal. Este é a flor bendita do espírito; este é o princípio supremo da vida.
É sob a ação deste princípio que nos achamos aqui meus senhores; de maneira que neste momento rendemos culto ao ideal. É a significação de vossa festa, senhores acadêmicos, solenizando a data da criação dos institutos jurídicos; é a significação de vossa presença nesta solenidade, senhores professores. E é preciso acrescentar que, tratando-se do direito, trata-se precisamente do ideal em sua mais alta significação, porque o direito é rigorosamente o que se pode chamar um ideal vivo: é a idéia que se transforma em lei e passa a operar como força na comunhão social. Pode-se assim dizer que o direito é de todas as ciências a mais nobre. É verdade que na ordem do conhecimento não se pode estabelecer esta gradação de nobreza, porque toda a ciência é perfeita e tem direito ao mesmo grau de benemerência, por mais desprezíveis que sejam os elementos naturais cujas leis se trata de determinar. A ciência não tem menos valor por estudar os vermes que se arrastam na lama ou os monstros que se agitam no fundo do mar. Mas no direito acontece que todos os elementos da inteligência conspiram para um resultado comum e harmônico, e deste modo é permitido dizer que o direito representa a fase final do desenvolvimento do espírito.
Cultivemos, pois, o direito, meus senhores; cultivemos esta ciência sagrada. É da perfeita compreensão e aplicação da justiça que depende a harmonia de nossa vida e o futuro de nossa pátria. Trata-se, pois, do nosso interesse imediato. Mas não é somente por esta consideração de ordem pessoal que devemos cultivar esta ciência, e sim por paixão e amor. O direito é uma ciência viva, porque é a ciência da ação; e é uma ciência sagrada, porque é uma ciência de amor e de justiça. Além disto o direito é em certo sentido a síntese da vida espiritual. Efetivamente nós encontramos aí todos os elementos constitutivos da idéia salvadora, da idéia que nos convence da verdade de um princípio indestrutível no fundo de nossa existência; de um princípio que nos coloca acima da ação consumidora do tempo. Efetivamente na natureza a harmonia, no mundo moral a virtude, no mundo social a justiça, – tal é o tríplice aspecto dessa força misteriosa e estranha que se manifesta na ordem do sentimento como amor é a poesia da vida, e na ordem do conhecimento como verdade, é o ideal supremo do espírito humano. Pois bem: a justiça por si só encerra todos estes elementos: a justiça é harmonia porque representa o acordo das vontades e a paz das consciências; a justiça é amor, porque significa a organização da sociedade pela confraternização dos interesses; o que quer dizer: pela lei de harmonia e pela lei de reciprocidade; e a justiça é verdade, porque é a legítima compreensão da organização social e a consagração dos direitos do homem.
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* Raimundo de Farias Brito (1862-1917) nasceu na vila de São Benedito, no Ceará. Foi promotor e secretário do governo do seu Estado natal, professor da Faculdade de Direito do Pará e catedrático de lógica no Colégio D. Pedro II, no Rio de Janeiro. Como filósofo combateu o positivismo. Racionalista com um fundo paradoxal de misticismo, era um homem que vivia perseguido pela idéia da verdade. Suas obras principais são: Finalidade do Mundo; A Verdade como regra das ações; A Base Física do Espírito e O Mundo Interior.
** Carlos Lopes de Mattos nascido em São Paulo, capital, falecido em Capivari, SP. Formado em filosofia em Louvaina, na Bélgica.
***INÉDITOS E DISPERSOS. NOTAS E VARIAÇÕES SÔBRE ASSUNTOS DIVERSOS. Editorial Grijalbo LTDA. São Paulo. 1966. p. 438
Por: Redação do Migalhas
Atualizado em: 9/8/2004 16:12