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Comecemos com uma comparação simples, mas reveladora. Segundo o último censo, nada menos que 45,3% dos brasileiros se declaram pardos, enquanto os que se dizem pretos representam 10,2%. Somados, esses dois grupos perfazem a maioria da população -55,5%, algo como 113 milhões de pessoas.
A realidade é completamente diferente no ambiente do Judiciário, do MP e do sistema de controle externo da administração pública. De acordo com as estimativas mais recentes do CNJ e do CNMP, somente 15% dos magistrados e 12% dos promotores se declaram pretos e pardos. Nos Tribunais de Contas o quadro não é muito melhor no topo. Dentre os conselheiros/ministros e seus substitutos, apenas 32,5% e 1,6% se dizem pardos e pretos, respectivamente.
A conclusão é tão óbvia quanto inescapável. Essas instituições, embora centrais na nossa república, nem de longe são representativas da diversidade étnico-racial do país. Em outras palavras, elas espelham não o Brasil real, mas outro, erigido ao longo de séculos de exclusão.
Nos últimos anos, felizmente, temos visto surgir esforços voltados a diminuir essas distorções. Desde 2015, ao menos 20% das vagas de concursos para juízes são reservadas para candidatos autodeclarados negros. A mesma regra passou, em 2017, a ser aplicada também às provas do MP. Mais recentemente, foi a vez do TCE-SP. Em 2022, foi implantada a política de cotas raciais nos concursos para servidores do tribunal.
As ações afirmativas, porém, apesar de necessárias num país como o Brasil, têm-se mostrado insuficientes para resolver o problema. Os potenciais benefícios esbarram no número reduzido de candidatos aprovados.
No caso da magistratura, apenas 2 em cada 5 vagas reservadas a pessoas negras foram preenchidas nos Tribunais de Justiça estaduais -e nenhuma nos TRFs. Se é verdade que a ociosidade não chega a ser incomum nesse tipo de concurso, também é fato que ela se mostra consideravelmente maior entre os cotistas. Situação muito semelhante ocorre no MP. Nos processos seletivos estaduais e federais mais recentes, 44% dos postos reservados a pretos e pardos não foram ocupados.
Diversos fatores colaboram para tais resultados. Um estudo recente do IPEA (Instituto de Pesquisa Aplicada Econômica) sobre um concurso nacional da Justiça do Trabalho elencou algumas das barreiras que os candidatos enfrentam.
O trabalho aponta, por exemplo, que o custo médio de preparação dos aprovados foi de R$ 36 mil -valor que engloba desde gastos com cursos preparatórios, materiais de estudo e computadores até aqueles referentes a vestimentas, hospedagens e deslocamentos para as provas.
Além dos elevados custos financeiros diretos, o tempo disponível para estudo também é outro elemento de diferenciação. A pesquisa mostrou que a maior parte dos candidatos que abandonaram algum trabalho ou reduziram a carga laboral para se prepararem era formada por pessoas não negras.
A existência de diversas etapas de participação presencial nos concursos, as quais demandam viagens e, não raro, pernoites, constitui mais um fator a influenciar o resultado final. Vistas em conjunto, “essas possibilidades diferenciadas e bastante onerosas constituem-se elementos de exclusão, ainda que todos estejam submetidos às mesmas condições de seleção”, escrevem os autores.
São, portanto, muito bem-vindas medidas como as implementadas recentemente pelo CNJ. No fim de fevereiro, o conselho lançou um programa de concessão de bolsas de estudo para negros e indígenas em cursos preparatórios para provas da magistratura, a exemplo do que já ocorre no Itamaraty, no Senado e na AGU (Advocacia Geral da União). Também está prevista a criação de uma bolsa manutenção, destinada ao custeio de despesas com inscrições, material bibliográfico, alimentação e transporte, entre outros itens.
Antes, o órgão já havia definido uma nota mínima diferenciada de 50% de acertos para a aprovação no novo Exame Nacional da Magistratura, etapa que a partir deste ano irá anteceder os concursos habituais da área -para os demais candidatos, o percentual será de 70%. Mecanismo semelhante também vem sendo discutido no âmbito do CNMP.
Somadas, essas iniciativas se afiguram importantes para que as cotas possam, de fato, cumprir seu papel. A formação de uma burocracia representativa e diversa, em especial nas carreiras mais prestigiadas do Estado, é um passo fundamental se quisermos construir uma sociedade mais inclusiva e igualitária.
Dimas Ramalho
Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.