Resolução CVM 88/22: Leitura a partir das operações de securitização   Migalhas

Resolução CVM 88/22: Leitura a partir das operações de securitização – Migalhas

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Nos termos do art. 18, parágrafo único, da lei 14.430/22, as operações de securitização constituem um processo econômico pelo qual uma companhia securitizadora adquire direitos creditórios e os utiliza como lastro para a emissão de certificados de recebíveis ou outros valores mobiliários, cuja remuneração é condicionada ao adimplemento dos direitos creditórios e das respectivas garantias que os lastreiam.

Tradicionalmente, as ofertas públicas de operações de securitização são realizadas por companhias securitizadoras registradas na CVM, conforme disciplina a Resolução CVM n° 60/2021, seguindo-se os ritos previstos na Resolução CVM 160/2022. Dentro os ritos de oferta desta normativa, temos o rito de registro ordinário de distribuição e o rito de registro automático de distribuição. O primeiro, mais demorado, demanda análise da oferta pela CVM e é normalmente destinado ao investidor varejo (público em geral). O segundo, que permite a aprovação automática da oferta, é consideravelmente mais rápido e normalmente destinado a investidores mais sofisticados (profissionais ou qualificados, nos termos da regulação da CVM). A Resolução CVM 160 ainda prevê o rito de registro com análise prévia por entidade autorreguladora, menos utilizado até o momento.

Vale ressaltar que a Resolução CVM 160 representou um avanço no registro e condução das ofertas públicas perante a autarquia – principalmente quando comparada às normativas anteriores1 -, contudo, o processo de aprovação das ofertas destinadas ao público em geral ainda pode ser visto como burocrático e lento. Isso se dá, principalmente, pela proteção ao investidor varejo que a CVM promove, em razão da presunção de sua inexperiência no mercado de capitais.

Nesse sentido, nos últimos anos, vem ganhando força outro mecanismo de captação de recursos regulado pela Resolução CVM 88/2022 – o crowdfunding – que, a depender do caso e das características da emissão, pode representar uma alternativa eficiente e dinâmica para a emissão de valores mobiliários.

A Resolução CVM 88 disciplina a distribuição de valores mobiliários emitidos por sociedades empresárias de pequeno porte, permitindo que estas façam ofertas públicas com dispensa de registro por meio de plataformas eletrônicas de investimento participativo. Conforme exposto nos editais de audiência pública SDM 06/2016 e SDM 02/2020, o objetivo principal da Resolução CVM 88 é propiciar uma forma de acesso ao mercado de capitais a tais sociedades, as quais enfrentam dificuldades de financiamento pelas vias tradicionais. A permissão de ofertas de certificados de recebíveis via Resolução CVM 88 representa, portanto, uma alternativa menos custosa aos ritos da Resolução CVM 160, especialmente para as ofertas públicas ordinárias, abrindo espaço para um small e middle market de operações de securitização2.

No contexto da Resolução CVM 88, a dispensa de registros está condicionada tanto a requisitos ligados à própria oferta, tais como limite de captação (R$ 15 milhões), prazo (180 dias), plataforma de divulgação e objetivos do montante captado, como a características do emissor, o qual (i) deve se enquadrar como uma sociedade de pequeno porte – isto é, não pode ter receita bruta anual acima de R$ 40 milhões, ou, R$ 80 milhões, de forma consolidada com o grupo econômico -, (ii) não pode ser emissor de valor mobiliário registrado na CVM; e (iii) não pode ter realizado outra oferta do mesmo tipo no prazo de 120 dias.

 Ainda que inicialmente criada para o financiamento de empresas em estágio embrionário (principalmente startups), desde que cumpridos os requisitos impostos ao emissor, é possível interpretar a Resolução CVM 88 de modo a permitir que as securitizadoras que se enquadrarem como sociedades de pequeno porte gozem do rito da oferta pública de distribuição da Resolução CVM 88.

Baseando-se exclusivamente no disposto na referida norma, uma securitizadora que cumprisse os requisitos máximos de receita bruta anual, não possuísse registro na CVM e fizesse essas ofertas a cada quatro meses, poderia utilizar desse rito de registro simplificado.

Contudo, fica evidente que a utilização desse rito, ainda que possível dentro da Resolução CVM 88, impõe certas barreiras que põe em xeque a conveniência de sua utilização. Em um primeiro momento, nas operações de securitização, o emissor são as companhias securitizadoras. Logo, as principais players do mercado estariam impedidas de utilizar desse rito em razão da limitação da receita bruta anual. Outro impeditivo seria o prazo mínimo de quatro meses entre as operações que, na prática, permitiria que uma securitizadora realizasse, no máximo, três emissões dessa espécie em um ano. Além disso, uma vez que determinadas operações de securitização possuem lastro concentrado, com um devedor específico, nos parece ser mais lógico que as regras originalmente previstas aos emissores fossem aplicadas aos devedores ou ao valor da dívida contraída, em uma eventual operação de securitização utilizando do rito da Resolução CVM 88.

Oportunamente, muitas dessas questões foram elucidadas pela CVM em 2023, por meio de manifestações da Supervisão da Securitização da CVM (SSE). Referidos esclarecimentos, contudo, foram prestados apenas aos tokens de recebíveis e não abrangeram as demais operações de securitização.

 Em 2023, a SSE divulgou os Ofícios Circulares 4 e 6 (2023/CVM/SSE). Em tais ofícios, a SSE estabeleceu a possibilidade de utilização da Resolução CVM 88 para se ofertar publicamente, com dispensa de registro na CVM, tokens de recebíveis, os quais podem ser equiparar a certificados de recebíveis ou outros valores mobiliários previstos na Lei n° 14.430/2022, representando, de fato, uma operação de securitização.

Com o Ofício n° 4, a SSE estabeleceu a possibilidade de utilização da Resolução CVM 88 para tais operações de securitização, e as condicionou ao cumprimento de requisitos ligados à oferta, bem como ao emissor, sendo que neste caso, o emissor deve ser uma companhia securitizadora de capital fechado, não registrada na CVM, que se enquadre na definição de sociedade de pequeno porte. Na hipótese de operações de securitização com instituição do regime fiduciário, conforme previsão do art. 26 da Lei n° 14.430/2022, a definição de sociedade de pequeno porte não se aplica à companhia securitizadora, mas sim ao próprio patrimônio separado. Referido entendimento facilita a realização das operações, uma vez que as limitações de receita não se aplicariam às devedoras, tampouco às securitizadoras.

Por outro lado, no caso de operações securitização com lastro concentrado em recebíveis de único devedor ou partes relacionadas, o Ofício n° 4 previu, em um primeiro momento, que tais requisitos do emissor poderiam se aplicar ao próprio devedor dos recebíveis.

Retificando parcialmente tal posicionamento, o Ofício n° 6 esclarece que, na hipótese de instituição do regime fiduciário, os requisitos do emissor devem se aplicar tão somente ao patrimônio separado, não se estendendo à companhia securitizadora ou ao devedor dos direitos creditórios, mesmo nas operações de securitização concentrada. Segundo a SSE, essa alteração de entendimento se coaduna com disposto no art. 44, §1°, inciso I, Anexo I, da Resolução CVM n° 175/2022 e art. 102, §1°, inciso I, da Instrução CVM n° 555/2014, os quais, no âmbito da regulação dos fundos de investimento, consideram o patrimônio separado como emissor para fins de cálculo de concentração.

A partir de tais Ofícios, as ofertas de certificados de recebíveis via Resolução CVM 88, que estavam zeradas até o ano de 2022, totalizaram R$ 89.870.000,00 em 2023, através de 28 emissões, sendo que até agosto de 2024, já foram realizadas 140 emissões, em um montante de R$ 469.948.612,673, o que inegavelmente representa um novo capítulo no mercado das operações de securitização.

Logo, algumas das questões anteriormente levantadas foram respondidas pela CVM nos ofícios e facilitaram a compreensão sobre a aplicabilidade da Resolução CVM 88 a outras ofertas. Com a aplicação do limite antes previsto para a receita bruta anual e da limitação de valores por ano ao patrimônio separado, a interpretação da SSE verdadeiramente abre espaço para uma expansão das operações de securitização.

Vale ressaltar, no entanto, que são devidas algumas críticas em relação aos esclarecimentos apresentados pela SSE. Primeiramente, no Ofício n° 4 se estabeleceu que companhias securitizadoras sem registro realizem ofertas, com igual dispensa de registro, para o público em geral. Isso, na prática, significa que a CVM não possui qualquer ingerência sobre essas ofertas em momento anterior à sua colocação no mercado. Afinal, a companhia securitizadora não precisa de registro para funcionamento na autarquia, tampouco a oferta é registrada na CVM (nem de forma automática, como ocorre para investidores qualificados e profissionais). Ainda que a proteção ao investidor varejo possa ser vista, muitas vezes, como um entrave burocrático ao registro de ofertas, entendemos que a ausência de qualquer intermédio da CVM em momento anterior ao início da oferta pode permitir a circulação de papéis podres, que apresentem riscos inaceitáveis ao mercado.

Em segundo lugar, discorda-se do posicionamento da SSE em relação à aplicação dos requisitos da Resolução CVM 88 ao patrimônio separado nas operações de securitização concentrada. Apesar do artigo 43-A da Resolução 60 e o Código de Ofertas Públicas da ANBIMA definirem que as operações concentradas são aquelas em que os títulos de securitização estão lastrados em mais de 20% de recebíveis de um mesmo devedor, no Brasil, é comum que tais operações ocorram com o lastro 100% concentrado em um mesmo devedor. Na prática, portanto, a aplicação dos requisitos da Resolução CVM 88 ao patrimônio separado significa que empresas que não se enquadram como pequeno porte podem utilizar-se da dispensa de registro mediante a simples contratação de uma securitizadora sem registro na CVM, de modo que esta securitize a dívida da empresa e oferte publicamente o título de securitização, o qual, na realidade, representará a própria dívida da empresa contratante. Ou seja, mesmo uma empresa de grande porte poderia se utilizar da Resolução CVM 88, o que evidentemente desvirtua o objetivo principal da norma. 

Por fim, ressalta-se que a CVM não se manifestou acerca da possibilidade de utilização do rito previsto na Resolução CVM 88 para oferta de títulos de securitização não tokenizados. Com essa ausência de posicionamento da CVM, nos resta a interpretação direta do texto da Resolução CVM 88, que desincentiva a sua utilização nas ofertas de securitização mais comuns.

Referido posicionamento pode frustrar determinadas iniciativas, uma vez que valores mobiliários como o CRI e o CRA poderiam ser popularizados com o rito da Resolução CVM 88. Esses certificados de recebíveis são muito atrativos aos investidores pessoa física, por sua isenção de Imposto de Renda, e são normalmente comercializados entre investidores profissionais e qualificados.  

Neste cenário, evidente que existe um debate prolífico sobre o tema. Justamente por isso, faz necessário que a SSE se mostre aberta ao debate em relação aos posicionamentos colocados nos Ofícios n° 4 e 6, bem como forneça esclarecimentos quanto à utilização do rito da Resolução CVM 88 para operações de securitização que não envolvam tokenização e expanda a discussão sobre essas novas aplicações ao rito da Resolução CVM 88.

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1 Dentre outros normativos revogados, a Resolução CVM 160 revogou a Instrução CVM n° 400, de 29 de dezembro de 2003 e a Instrução CVM n° 476, de 16 de janeiro de 2009, que regulavam as ofertas públicas de valores mobiliários antes de sua substituta.

2 SOUZA, Karina. Está na rua o menor CRI do Brasil. Exame, São Paulo, 6. dez. 2023. Disponível em: https://exame.com/invest/onde-investir/esta-na-rua-o-menor-cri-do-brasil/, Acesso em: 29. ago. 2024. 

3 Informação obtida por meio do site https://web.cvm.gov.br/app/esforcosrestritos/#/consultarOferta, com data-base em 29 de ago. 2024.

João Vitor Calabuig Chapina Ohara

João Vitor Calabuig Chapina Ohara

Associado da área de Societário e Mercado de Capitais do TN Advogados. Advogado, pós-graduando em direito societário pela Fundação Getúlio Vargas – FGV Law e bacharel em direito pela FDRP – USP RP.

Lucas F. G. Bento

Lucas F. G. Bento

Sócio das áreas de Societário e Mercado de Capitais do TN Advogados. Advogado e estudante de Finanças e Negócios pela USP, com passagens pela University of Illinois e University of Chicago, ambas nos EUA.

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